Exposição revela a produção artística e política LGBTQ+ em meio à ditadura
Em cartaz até abril de 2021, no Memorial da Resistência, em São Paulo, a mostra "Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura" revela de que maneira gays, lésbicas e trans eram retratados e como esse vasto grupo buscava se expressar, mesmo sob a ameaça de ser perseguido, preso e, até mesmo, assassinado.
Bear Plus visitou a exposição e selecionou dez materiais que podem ser encontrados por lá. Além de conversar com o curador Renan Quinalha, também entrevistou quem vivenciou aqueles difíceis anos.
Fotos feitas por Vania Toledo na Boate Medieval entre 1971 e 1984
A mostra traz algumas fotografias de Vânia Toledo feitas na Boate Medieval, entre os anos de 1971 e 1984, como a de um transformista, que, com uma maquiagem carregada, laquê no cabelo e detalhes grandiosos nas unhas, faz caras e bocas no clube noturno. Vânia foi uma das poucas fotógrafas que conseguiu circular entre as várias classes sociais de São Paulo com liberdade e desenvoltura. Além de registrar celebridades e artistas, como Caetano Veloso, Ney Matogrosso e o americano Andy Warhol, seu ídolo, ela, que morreu em julho último, aos 75 anos, também captou com maestria e sem pudor a vida noturna underground de São Paulo.
"A Vânia foi pioneira em retratar um universo até então pouco registrado, principalmente pelos veículos oficiais de imprensa e pela arte mainstream", afirma o cineasta Lufe Steffen, diretor dos documentários "São Paulo em Hi-Fi", sobre a vida noturna LGBT nos anos 1970 e 1980, e "A Volta da Pauliceia Desvairada", que faz um retrato da noite gay dos anos 2000 para cá.
Cartaz do espetáculo "Romance", do Dzi Croquettes
"O grupo subvertia tudo aquilo que se entendia por masculino. Por essa razão, para o regime militar, aquilo era uma afronta. O Dzi Croquettes era uma coisa de louco", diz Claudia Raia, que teve forte influência de Lennie Dale, coreógrafo da companhia, em sua carreira. Foi ele, inclusive, quem disse a ela sobre uma bolsa de estudos de balé em Nova York. A relação dos dois é tema de alguns trechos de "Sempre Raia um Novo Dia", livro de memórias da atriz.
Preste atenção: na mostra, ao lado da reprodução do cartaz de "Romance", está o do espetáculo "A Engrenagem do Meio", escrito por Darcy Penteado. Com direção de Odavlas Petti, esta montagem de 1978 é considerada a primeira a abordar um personagem homossexual desprovido de estigmas. A exposição também traz um documento, do mesmo ano, sobre o processo de liberação da peça. O texto deste material diz que, caso o Departamento de Polícia Federal vetasse este tipo de peça, "estaria fazendo sua promoção, ensejando, portanto, sucesso de bilheteria e propaganda daquilo que ele próprio coíbe".
Coluna do Meio, do jornal Última Hora
"Mário Gomes, com seus belo par de olhos claros e jeitinho de criança, está, não só abalando as estruturas dos mais fracos, como também dos mais fortes: a direção da Globo, por exemplo." Assim começava uma das notas da Coluna do Meio, publicada semanalmente entre 1976 e 1979 no Última Hora. Sob responsabilidade do jornalista Celso Curi, este espaço no jornal trazia notícias nacionais e internacionais sobre o universo LGBTQIA+, em uma época que tal abreviatura estava bem longe de existir.
"A Coluna do Meio foi, definitivamente, um canal para que gays, lésbicas e travestis se sentissem vivos e representados", acredita Curi. A mostra "Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura" apresenta duas edições da Coluna do Meio, publicadas nos dias 10 e 17 de fevereiro de 1976. Além da informação sobre o galã Mario Gomes, a coluna traz uma nota sobre o show de Elis Regina, que "apesar das pernas e pés feios é ídolo das sapatas"; e uma sessão de correio elegante: "Gostaria de me corresponder com rapazes jovens que estejam interessados em acampar. Tenho barraca, sei cozinhar e tenho carro. Só me falta a companhia", escreveu Luz do Sol, da Penha.
Jornal Lampião da Esquina
"Homossexuais, a Nova Força". "Tudo Sobre o Encontro do Povo Gay". "Carnaval das Bichas É o Maior do Mundo". "Lesbianismo. Machismo. Aborto. Discriminação". "Amor Entre Mulheres". Esses são alguns dos títulos principais do Lampião da Esquina, jornal publicado entre os anos de 1978 e 1981. A exposição traz, em um enorme mural, vários exemplares da publicação. Um de seus editores foi o autor de novelas Aguinaldo Silva.
Boletim ChanacomChana
Embora a quantidade de publicações voltadas ao público homossexual fosse mais numerosa durante a ditadura militar, as lésbicas também tinham um boletim para chamar de seu. Um dos mais famosos e populares foi o ChanacomChana, produzido pelo grupo de Ação Lésbico-Feminista. "O ChanacomChana surge já nos anos 1980, quando a ditadura militar está mais enfraquecida e fragilizada", explica Quinalha.
A proibição da venda do ChanacomChana no Ferros's Bar, em São Paulo, em 1983, desencadeou aquela que é conhecida como a Revolta de Stonewall brasileira, uma referência às manifestações contra a discriminação a gays, lésbicas e trans que aconteceram em 1969 no bar nova-iorquino Stonewall, marco da luta pelos direitos da comunidade LGBTQIA+. No dia 19 de agosto de 1983, o dono do estabelecimento chegou a chamar a polícia para que as mulheres não comercializassem o boletim por lá. Quem estava no local não aceitou a proibição e invadiu o bar. Detalhe: a maior parte da clientela do Ferro's era formada por lésbicas.
A mostra "Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura" exibe alguns exemplares do ChanacomChana, incluindo um que traz uma matéria especial sobre o Dia Internacional da Mulher e uma reportagem na qual a Associação das donas de casa discute lesbianismo e aborto. É também possível assistir ao clipe da música "Francha com Francha", gravado no próprio Ferro's Bar. A canção seria apresentada no Festival Nacional das Mulheres das Artes, em 1982, mas acabou sendo censurada.
Jornal Notícias Populares
Na contramão de veículos independentes direcionados à comunidade LGBTQIA+, publicações e jornais convencionais costumavam abordar de maneira jocosa questões relacionadas a este universo. Além disso, reportagens sobre gays, lésbicas e travestis geralmente eram publicadas nas páginas policiais, como mostram dois exemplares do jornais Notícias Populares expostos na mostra.
Revista Fatos e Fotos Gente
Ao longo de boa parte do ano, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, gays, lésbicas e trans eram escondidos da mídia ou, como prova os exemplares do Notícias Populares, ganhavam espaço nas páginas policialescas. No entanto, bastava o Carnaval chegar para, sobretudo as travestis, estamparem capas de edições especiais de publicações. A cobertura dos bailes carnavalescos, principalmente no Rio de Janeiro, repletos de travestis e celebridades era bastante aguardada.
Em edição de 2 de março de 1981, por exemplo, com o título "Gay Fantasy: Um Sonho de Verão Empolga o Rio", Rogéria, Camille K, Eloína dos Leopardos e Jane Di Castro estamparam a capa da revista Fatos e Fotos Gente, um dos destaques da mostra "Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura". Em tempo: a trajetória das quatro e de outras artistas travestis dos anos 1960 pode ser conferida no documentário "Divinas Divas", de Leandra Leal.
Álbum "Questão de Gosto", de Leci Brandão
Em 1976, em seu primeiro álbum lançado por uma grande gravadora, intitulado "Questão de Gosto", a sambista Leci Brandão gravou "As Pessoas e Eles", considerada uma das primeiras canções brasileiras a falar abertamente sobre homossexualidade. Com os versos "As pessoas não entendem/Porque eles se assumiram/ Simplesmente porque eles descobriram/ Uma verdade que elas proíbem", a faixa, claro, chamou bastante a atenção. Autora da letra e da melodia, Leci conta que a ideia da música surgiu a partir de um ato de violência presenciado por ela no Rio de Janeiro.
Além do LP "Questão de Gosto", a mostra ainda apresenta, entre outras, capas de discos da banda Secos e Molhados e do cantor Ney Matogrosso. Vale ainda prestar atenção na seleção de canções do LP "Medieval Dancing Gay", também exposto, com os principais hits que tocavam na casa noturna paulistana, incluindo "Music Man", do The Ritchie Family, e "Carmen Miranda in Brazil", uma coletânea de sucessos remixados da Pequena Notável.
Cassandra Rios
"Tessa, a Gata". "A Borboleta Branca". "As Traças". "A Madrasta". "Nicoleta Ninfeta". "Georgette". "Uma Mulher Diferente". Estes são alguns dos títulos de livros de autoria de Cassandra Rios, primeira escritora brasileira a alcançar a marca de 1 milhão de exemplares vendidos. Sucesso popular, Cassandra se especializou em romances eróticos, nos quais as mulheres viviam histórias de amor entre si. Sua primeira obra data de 1948, quando, aos 16 anos, publica "A Volúpia do Pecado", sobre duas adolescentes que se apaixonam.
É claro que a popularidade da escritora irritou os segmentos mais conservadores da sociedade brasileira. Durante a ditatura militar no país, 36 obras escritas por ela foram censurados. A exposição "Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura" mostra quais foram elas.
Bandeiras LGBTQIA+
Entendido e entendida. MHB. GLS. GLBT. LGBT. LGBTQIA+. As denominações e as letras para falar sobre os LGBQIA+ foi crescendo com o passar dos anos a fim de incluir todos, todas e todes que fazem parte da comunidade. E cada um desses grupos tem também uma bandeira para chamar de sua.
Por essa razão, vale também visitar o espaço onde estão as bandeiras das lésbicas, dos bissexuais, dos agêneros, dos interssexuais, dos trans, da diversidade, dos não binários, dos leathers, dos ursos, da visibilidade assexual, dos aliados e dos pansexuais. Se você fizer parte de um ou mais desses grupos, procure pela sua bandeira.