"Ele disse que eu não posso usar o banheiro feminino. Travesti não pode usar o banheiro. Vou fazer xixi onde?" A pergunta foi feita por Lanna Hellen, em vídeo gravado no momento em que foi impedida por um segurança de usar o banheiro do Shopping Pátio Maceió, na capital alagoana. Ela foi arrastada por seis homens para o estoque, de onde só conseguir sair dentro de uma viatura policial. Um ano depois, o caso se tornou uma das primeiras condenações do país por transfobia relacionada a banheiros públicos.
Mas as agressões sofridas por Lanna em Maceió acontecem em todo o país. Serem impedidas de usar um banheiro público é uma das queixas mais frequentes das pessoas trans, inclusive entre pessoas famosas —como a cantora Linn da Quebrada e a atriz Gabriela Loran— e em espaços de poder, como na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), onde, em 2019, o deputado Douglas Garcia (PSL-SP) disse, em plenário, que "expulsaria a tapas" uma mulher trans do banheiro feminino.
Para garantir que todas as pessoas possam usar o banheiro de acordo com sua identidade de gênero, ou seja, que mulheres trans usem o banheiro feminino e homens trans, o masculino, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) lançou a campanha "STF, Libera Meu Xixi".
A ideia é pressionar o Supremo Tribunal Federal a retomar o julgamento sobre o tema, em uma ação que chegou a corte por um caso específico, mas que está suspensa há sete anos.
"Falta de vontade política" trava debate
Em 2015, os ministros do tribunal chegaram a discutir a ação de uma mulher barrada no banheiro de um shopping em Santa Catarina. A decisão serviria como resposta a mais de 700 casos semelhantes que estão parados na Justiça. Na ocasião, os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin se manifestaram a favor da população T, mas Luiz Fux pediu vista (mais tempo para analisar o caso) e a ação segue parada desde então.
Para a advogada Maria Eduarda Aguiar, da Antra, essa pausa de sete anos nos debates se deve à "falta de vontade política".
De forma geral, o Judiciário tem reconhecido os direitos de pessoas trans que passam por constrangimentos como os citados e acionam a Justiça em busca de danos morais, por exemplo, e ganham os processos —mas, segundo ela, falta um reconhecimento formal de que este é um direito assegurado.
"É importante que essa questão seja formalizada para dar segurança e gerar políticas de combate à discriminação no uso de banheiros públicos", diz.
E, enquanto aguarda o STF retomar o julgamento da ação, a Antra levou ao gabinete do deputado federal David Miranda (PDT-RJ) um projeto de lei que reconhece esse direito. A proposta foi protocolada em outubro de 2020 e ainda não seguiu para análise das comissões da Câmara.
Congresso Nacional nunca aprovou uma única proposta favorável aos direitos da população LGBTQIA+.
"Há um grupo minoritário na sociedade que é extremamente conservador e preconceituoso contra pessoas LGBTQIA+, que movem campanhas com fake news e discurso de ódio para alimentar a discriminação", fala a advogada. "É preciso combater tudo isso com leis protetivas e educação sobre diversidade, principalmente porque esse processo de exclusão não é só dos banheiros, mas das escolas, do mercado de trabalho, dos espaços de poder. A pessoa trans ainda sofre muito preconceito e rejeição, mas estamos aqui pra mudar essa situação."
Discriminação afeta saúde das pessoas trans
Felipe Medeiros, infectologista, afirma que pessoas trans têm mais risco de sofrer com problemas renais porque, em razão da discriminação e do medo de usar banheiros fora de casa, seguram a urina com frequência.
"Como pessoa trans não-binária, o banheiro público é um dos meus maiores traumas. A sociedade exige da gente uma aparência dita feminina para usar o banheiro feminino —e eu, que ainda não tenho essa aparência, tenho muito medo de entrar no banheiro e sofrer algum tipo de transfobia. Por isso, sempre peço para uma amiga ir comigo", fala a médica.
"As pessoas não precisam sofrer para fazer xixi. Isso é desumano e muito transfóbico" Felipe Medeiros, infectologista
Tanto Felipe quanto o endocrinologista Henrique Cecotti, ambos especialistas no atendimento de saúde a pessoas trans, afirmam que o medo de usar banheiros públicos e o hábito de segurar a urina por muitas horas, de forma recorrente, pode trazer consequências que vão desde infecções urinárias até distúrbios mais severos, como a perda da sensibilidade na região e a dificuldade crônica para urinar.
"Tudo isso pode prejudicar muito a qualidade de vida. Para nós, pessoas cisgênero, pode ser dificil imaginar, mas não poder usar o banheiro livremente limita uma pessoa trans de viver, limita o funcionamento saudável do corpo dela", fala Henrique.
"Se tivéssemos à nossa disposição banheiros seguros, como as pessoas cisgênero têm, não teríamos todos esses problemas", pontuaFelipe.