De violências simbólicas a físicas, homens trans e pessoas transmasculinas são privados de um atendimento ginecológico
Aguardar na sala de espera para ser atendido por um ginecologista parece algo banal, mas para muitos homens trans pode representar um início de uma série de violências . “Cheguei sozinho no médico, fui até a recepção e mostrei meu documento com meus dados de registro para a secretária. Ela ficou parada olhando para mim sem entender quem era aquele homem que queria se consultar no ginecologista”, relata o funcionário público Paulo Vaz, de 35 anos, sobre a sua primeira ida ao consultório ginecológico após a hormonização.
“Onde está a paciente?”, perguntou a secretária. “Expliquei que aquela pessoa com o nome feminino era eu, que era um homem trans e tinha nascido com vagina”, conta. A secretária anotou as informações do RG -- que naquela época ainda não havia sido retificado com o nome de Paulo -- e entrou na sala do médico. “Acredito que o ginecologista já sabia da existência de homens trans e explicou para ela, pois a secretária voltou mais calma e menos confusa. Depois entrei na consulta, conversamos bastante com o médico e deu tudo certo.”
Diferente do ginecologista de Paulo, que já tinha algumas informações de como lidar com o público trans, o contador e coordenador da área de homens trans e transmasculinidades da Aliança Nacional LGBTQIA+ Fabian Algarte, de 47 anos, não teve a mesma sorte. “Houve médicos que me disseram que não poderiam me atender por eu ser trans, porque ‘não sabiam o que poderia encontrar’. Sou um homem trans, não sou o porta-malas de um carro com contrabando”, lamenta.
Após o ginecologista de confiança de Fabian, que o acompanhou desde antes de sua transição, se aposentar, ele conta que procurou durante meses um profissional para atendê-lo. Após uma série de episódios de transfobia e de médicos que se recusaram a consultá-lo, decidiu desistir das buscas. “Estou há quase um ano sem ir a um ginecologista. Pretendo retomar a procura por um quando o profissional leve seu compromisso médico acima dos seus juízos de valores”, afirma.
“Sempre que um médico me diz que não atende homem trans porque não sabe nada sobre 'isso', eu considero preconceito. Primeiro porque eu não sou ‘isso’. Segundo porque a medicina existe há anos, a realidade da nossa existência é cotidiana e cada vez mais ocupa a mídia. Não há dificuldades em se atualizar a respeito da nossa existência, conhecer o processo transexualizador do SUS, que existe desde 2008, ou buscar informações da prática clínica”, comenta Fabian.
Além das violências que podem ocorrer nas consultas ginecológicas, fazer exames de sangue ou imagens laboratoriais pode ser algo bem complicado para os homens trans. “Era tragicômico quando tinha que fazer um intravaginal. A recepcionista me dava a camisola e o médico sempre achava que eu tinha errado de sala”, conta Paulo.
O funcionário público acrescenta que os sistemas computacionais e as fichas de cadastro dos centros de exames também estão defasados. “Quando vou fazer exames de sangue ou imagem nos laboratórios, eles sempre precisam colocar seu gênero no feminino porque o sistema informático não aceita. O que custa eles atualizarem um bendito programa de computador e ou protocolo?”, questiona.
Por dentro da medicina
A ginecologista Ana Thais Vargas, que atende na clínica social da Casa 1 -- centro cultural e de acolhida para a população LGBTQIA+ em São Paulo -- conta que existem pouquíssimas informações sobre o atendimento à população transexual na área médica. “É de absoluto desconhecimento, não há quase nada de literatura sobre transexualidade. A faculdade de medicina, as residências e a medicina no geral, assim como a área de ginecologia obstetrícia, são extremamente machistas, misóginas e homofóbicas. Só temos informações e aprendemos a tratar pessoas que são hétero e cisnormativas”, conta.
Em 2015, quando Ana se voluntariou como médica para atender os pacientes da Casa 1, logo pensou que não haveria muito trabalho para ser feito como ginecologista. “Na minha cabeça seriam só homens gays cis”.
“Foi uma surpresa quando me deparei com homens trans, mulheres trans, mulheres lésbicas cis. Tinha zero conhecimento sobre a transexualidade masculina. A transexualidade feminina a gente até ouve falar, mas homem trans nunca tinha ouvido”, relembra.
Para adaptar a forma de realizar a consulta, Ana teve que aprender na prática e também conversar com um colega trans, já que não encontrou as respostas por meio da literatura médica. “Aprendi o que era um binder e um packer. Tive que reformular minha fala, as perguntas que eu fazia no consultório e me atentar aos pronomes e gêneros. Antes perguntava 'você tem marido?', uma pergunta extremamente heteronormativa e excludente, que foi o eu aprendi na faculdade, por exemplo”.
Para ela, é imprescindível que o atendimento ginecológico se torne mais diverso, inclusivo e humanizado. “Essa situação é prejudicial, pois afugenta os homens trans. A falta de ida ao médico pode fazer com que eles adoeçam de doenças e infecções que são evitáveis e que são tratáveis, como câncer de colo de útero e ISTs . Quando vai descobrir já está muito avançado e não tem o que fazer”, conta.
Para a médica, além da medicina preventiva, é necessário que os homens trans se atentem à gestação. “É necessário falar de contracepção para que se sintam seguros para poderem transar com quem eles quiserem, mesmo que seja com uma pessoa com pênis”.
Além disso, Ana relata que alguns pacientes podem sofrer de disforia com algumas áreas do corpo e é necessário empatia da parte do médico. “A ginecologia é violenta e invasiva até para as mulheres cis, então fazer papanicolau para todo mundo, colocar o espéculo de qualquer jeito, não pedir para invadir o corpo do outro... essas coisas devem ser pesadas pelo ginecologista que vai atender o homem trans”.
O ator Tarso Brant, de 28 anos, conheceu sua ginecologista a partir de uma recomendação do seu endócrino. Ele conta que não se sente confortável realizando alguns tipos de exames considerados mais invasivos. “Meu órgão não é algo que eu tenho muita proximidade na hora de ir numa consulta médica. Sabendo da minha condição, a ginecologista sugere alguns exames de imagens quando possível”, conta.
“A segurança é primordial, se a gente não é respeitado e não estabelece uma relação aberta com o profissional, não tem como a gente se sentir bem nas mãos do médico. Além disso, existe a barreira do preconceito, de ficar com medo de ir por não saber como o ginecologista vai te tratar”, explica Tarso.
Fabian concorda. “Se nos sentimos constrangidos em procurar profissionais da ginecologia é porque temos medo do preconceito, do stress de sermos olhados e tratados como aberrações. Se querem nos ajudar a cuidar melhor da nossa saúde, responsabilizem-se por isso. Adotem políticas inclusivas em seus consultórios. Retirem material que fala especificamente de mulheres e comecem a falar de vaginas, de úteros, trompas”, acrescenta o coordenador da Aliança Nacional LGBTQIA+.