Geek Queer: gênero Boys Love é expoente na representatividade asiática
Desde os anos 1970, a presença de referências e retratações LGBTQIA+ explícitas cresceu nos animes e mangás; acompanhe a evolução da narrativa
A cultura asiática, especialmente a japonesa em termos de cultura pop, além de bastante difundida no mundo todo, marcou – e ainda marca – presença na vida de várias gerações. Quantas crianças, por exemplo, cresceram assistindo "Naruto", "Pokémon" e "Dragon Ball"? São obras que atingiram uma amplitude muito grande de público, mas além delas existem outras produções que abraçam gêneros variados e chegam a fazer contato com a comunidade LGBTQIA+.
O fato do Japão ser um país explicitamente conservador já sugere que a representatividade queer em animes e mangás não é deliberada. Contudo, as primeiras aparições de personagens LGBTQIA+ começaram na indústria a partir dos anos 1970. Bear Plus separou alguns exemplos nesta linha do tempo, e traz à tona os expoentes de dois gêneros que concentram a maior parte da representatividade LGBTQIA+ nos animes e mangás: Boys Love (BL) – amor entre garotos – e Girls Love (GL) – amor entre garotas .
O objetivo é propor reflexão sobre as transformações na indústria e trazer algumas curiosidades e características relevantes das obras atuais e passadas que é importante ter em mente, especialmente quando se é uma pessoa LGBTQIA+ consumindo este tipo de conteúdo.
Evolução gradual e tímida
Em 1972 foi lançado o mangá “Rosa de Versalhes” – publicado no Brasil apenas em 2019, por meio da editora JBC. A obra rompe com os padrões de gênero e, de quebra, ainda tira a mulher de um local estruturalmente submisso. Foi como uma espécie de pontapé para que outras produções que desafiam o conservadorismo e a hétero-cis normatividade surgissem, mesmo que gradualmente.
Esse salto fica evidente quando, em 1985, por meio da revista shoujo “Betsucomi”, é publicado “Banana Fish”. A história acompanha Ash e Eiji e é cercada de drama, gatilhos como abuso sexual e violência e tem um final trágico que jamais será perdoado por muitos fãs da obra. No começo, os protagonistas desenvolvem uma amizade, que posteriormente dá indícios de ser muito mais do que isso. Não existe nenhuma interação romântica explícita, é algo mais puxado para o platônico e para o bromance, mas que aquece o coração de quem faz parte da comunidade e acompanha a história. O mangá – lançado no Brasil pela Panini – foi adaptado para anime em 2018.
De 1985 vamos para 1992. Neste período, o gênero yaoi – usado para se referir a obras que retratam relações românticas e sexuais entre homens – já existia, bem como algumas obras que se encaixavam no gênero, mas ainda assim quem ganhou destaque foi “Sailor Moon”. A história gira em torno de defensoras renascidas de um reino que está ameaçado pelas forças do mal e, com isso, as personagens principais se transformam em heroínas que representam a lua e os planetas.
Em meio à obra temos Sailor Urano e Sailor Netuno, que apesar de serem retratadas na tradução original como primas próximas, fica claro que elas possuem uma proximidade e intimidade que pode sim ser associada a romance. Esse significado subentendido se popularizou na comunidade LGBTQIA+.
Ainda nos anos 1990, vem “Utena”, uma história originalmente criada em forma de anime para depois ser adaptada para o mangá. A protagonista, que leva o mesmo nome da obra, deseja viver um romance tradicional, até que se envolve com a melhor amiga, o que a torna uma representante sáfica muito importante na indústria. Já em 1999, lançado pela revista Zipper com cinco volumes trazidos ao Brasil pela Conrad, surge “Paradise Kiss” que retrata nada mais, nada menos do que uma mulher trans: Isabella.
Em uma conversa com a protagonista da obra, Yukari, ela conta que desde criança não conseguia sentir-se pertencente ao gênero masculino que lhe foi designado. Levando em consideração a época – beirando os anos 2000 –, é importante usar este exemplo para fechar a breve linha do tempo e comparar com o começo, em 1972, quando apenas os estereótipos de gênero eram afrontados, ainda com timidez. Durante três décadas, as transformações ficaram bem evidentes, e a partir de então a quantidade de obras abertamente LGBTQIA+ apenas aumentou.
Boys Love: expoente em ascensão
A partir dos anos 2000, os animes Boys Love e Girls Love começaram a pipocar na indústria e atraem cada vez mais fãs assíduos por um pouco de representatividade em meio a uma cultura cis-hétero normativa e extremamente conservadora – especialmente por serem ambientadas no Japão. Também levando em consideração a evolução desse gênero pelos anos, o iG Queer separou algumas obras marcantes em ordem cronológica.
A primeira parada é em 2008, com “Junjou Romantica”. Baseado no mangá de Nakamura Shungiku, o anime acompanha Misaki, um estudante de ensino médio que está se preparando para entrar na universidade. Ele vai morar com Akihiko, um escritor que é amigo do seu irmão e lhe dará tutorias. O romance entre eles é desenvolvido junto ao de casais secundários que surgem na trama.
Depois veio “Sekaiichi Hatsukoi”, em 2011, da mesma autora de “Junjou Romantica”. O anime acompanha três casais unidos justamente pela indústria dos mangás. A vertente principal acompanha a história de Ritsu, editor de livros que abandona o cargo na empresa do pai para seguir o próprio caminho. Ele consegue emprego em uma editora grande, porém na seção de mangás – algo com que não tem familiaridade. Ele só não contava que o editor do setor, Masamune Takano, nada mais, nada menos do que o primeiro amor de Ritsu no tempo do colégio. Assim como “Junjou Romantica”, a obra tem uma carga dramática marcante e não chega a explorar questões de sexualidade a fundo, apesar do relacionamento explícito entre dois homens.
Partindo para 2014, chega “Love Stage”. O protagonista, Izumi, nasceu e cresceu em uma família de estrelas, e quando criança foi colocado em um vestido para fazer o papel de uma garota em um comercial. Anos depois, Ryouma, com quem Izumi gravou o comercial durante a infância, ainda é obcecado pelos olhos dele. Izumi concorda em fazer um remake da publicidade, mas Ryouma não sabe que ele é menino. A revelação cria um vínculo entre os dois que se desenvolve ao longo da trama. Apesar de alguns aspectos estereotipados e pouco trabalhados, a obra vale a citação por ser bastante popular entre os clássicos do BL.
No ano seguinte, em 2015, “Hybrid Child” apresentou uma proposta diferente do que foi visto até então. Em um universo de fantasia, o artesão Kuroda criou bonecos com inteligência artificial, chamados Hybrid Child. Esses seres não são exatamente máquinas, mas sim reflexos do amor que recebem dos “donos”. Com base nisso, o anime acompanha a trajetória de um humano e um Hybrid Child, mas só no final os espectadores descobrem o motivo pelo qual Kuroda criou estes seres em primeiro lugar.
Um ano depois, saindo do gênero de fantasia, o BL caminha para o mundo dos esportes. Em 2016, “Yurii On Ice” marcou muito a indústria principalmente por ser um anime BL premiado em 2017 no Tokyo Anime Award Festival como Animação do Ano. A história acompanha Yuri, um jovem competidor de patinação artística prestes a desistir dos próprios sonhos. Quando um vídeo dele reproduzindo a coreografia do atual campeão mundial viraliza, a vida de Yuri vira de ponta cabeça. O patinador russo Victor Nikiforov, ídolo de Yuri, se muda para o Japão a fim de treiná-lo.
A obra conta com cenas de apresentações e performances lindas de tirar o fôlego, além de desenvolver a relação entre Yuri e Victor de maneira muito natural. Eles não chegam a se assumir como casal verbalmente, mas há uma cena em que trocam alianças e outra em que Victor pula em Yuri para parabenizá-lo pela apresentação e os rostos ficam muito próximos, sugerindo que eles se beijaram. Essa retratação mais livre, descontraída e sensível marcou não apenas a indústria, mas o coração dos fãs.
Se até então as interações sexuais estavam fora de cogitação ou bastante discretas, em 2018 isso mudou. O anime “Dakaretai Otoko 1-i ni Odosarete Imasu” tem cenas de interação sexual bastante evidente e conta a história de Takato Saijou, um ator famoso que foi eleito por vários anos seguidos como “o homem mais sexy do ano”.
Mas quando Junta, um novato na indústria, ganha esse título e se torna o protagonista na próxima série em que Takato aparece, o veterano vê-se com inveja. Após alguns incidentes, fica claro que Junta quer roubar o coração de Saijou, o que dá início à relação deles de fato. As cenas de tensão sexual, beijos e toques levantam duas questões: tanto a importância de ter essas interações naturalizadas quanto o fato de que relações aquileanas, assim como relações sáficas, podem ser hipersexualizadas facilmente.
Saltando para o ano seguinte, em 2019, não dá para deixar “Given” de fora. A obra atualmente condensada em seis volumes de mangá pela NewPOP no Brasil tem uma adaptação para anime e um filme. A trama gira em torno de Uenoyama, que decide tirar um cochilo na escadaria da escola e se depara com Mafuyu dormindo abraçado a um guitarra Gibson. Posteriormente, ele pede que Uenoyama lhe ensine a tocar, e dessa interação nasce um romance leve que carrega teor dramático forte e casais secundários igualmente sensíveis.
Em Given vê-se as demandas LGBTQIA+ mais evidentes, apesar de não serem discutidas objetivamente. Há também a presença de um personagem bissexual – Akihiko –, conversas sobre maturidade, luto e, principalmente, amor independentemente de gênero.
Fechando esta linha do tempo, nada melhor do que falar sobre “Umibe no Étranger”, ou “Estranho à Beira-Mar”. A obra é de 2020 e foi trazida ao Brasil pela NewPOP. Além do mangá, há um filme que retrata a trajetória de Shun, escritor abertamente gay que foi abandonado pelos pais após se assumir. Na pequena ilha em que mora, ele conhece Mio, um órfão com quem cria uma forte relação. Certo dia, Mio revela que vai se mudar para outra cidade, mas retorna anos depois e se declara para Shun. Porém, nesse meio tempo em que esteve longe, muitas coisas aconteceram e a grande questão é saber se eles conseguirão manter uma relação.
Fazendo um comparativo com a primeira obra citada, “Junjou Romantica”, vê-se que, ao longo dos anos, a forma de retratar romance entre dois homens evoluiu de uma abordagem sem grande aprofundamento com relação às demandas e conflitos vividos por pessoas LGBT, para uma obra como “Estranhos à Beira-Mar”, que debate sobre homofobia explicitamente. Até mesmo “Yurii On Ice”, que não teve nenhuma discussão escancarada conseguiu em pleno 2016 trazer uma relação leve e bem elaborada que foi reconhecida em uma premiação importante. Tendo isso em vista, vale pensar no que a indústria pode oferecer nos próximos anos.