Mãe que teve bebê intersexo relata preconceito e falta de direitos

Thais Emilia descobriu que o filho Jacob era intersexo em 2016. Após o nascimento, a psicanalista precisou lidar com o impacto social e a falta de direitos
Mesmo ainda bebê, Jacob se tornou o símbolo de uma luta, levada adiante pelos pais, Thais Emilia e Beto - Foto : Arquivo Pessoal

Thais Emília, psicanalista e educadora especialista em educação inclusiva, diversidade, sexualidade e gênero, já era mãe de duas crianças quando Jacob nasceu, em 2016. Desde a gestação, ela sabia que o bebê era intersexo.

Assim que deu à luz, ela se deparou com problemas que não imaginou que teria ao longo da gravidez. A primeira delas foi a reação de todos no hospital. Thais contou à Marie Claire que Jacob, seu filho, tinha se tornado assunto nos corredores.

Lembro de uma mãe me perguntar se meu bebê era menino ou menina, e eu disse que não sabia. Nessa hora, ela gritou pela porta: ‘O bebê aqui do lado é hermafrodita’. Essa reação, para mim, foi como uma violência. A privacidade acabou. O impacto social foi grande.”

A psicanalista também se recorda de uma enfermeira auxiliar que chorava ao olhar para o bebê. A fim de conter a movimentação, uma profissional específica foi designada para cuidar de Jacob. “Chegou ao ponto de pedirem para ela fotos dele durante o banho ou troca de fralda, por curiosidade. Isso não é ético. Ocorreram muitos problemas ali”, afirma.

Outro impasse foi com a DNV (Declaração de Nascido Vivo), que não foi emitida, já que não conseguiam afirmar se Jacob era menino ou menina. No Brasil, em 2016, não era permitido o registro de pessoas intersexo, já que a Lei de Registros Públicos determina ser obrigatória a informação do sexo biológico no momento do nascimento.

Na primeira semana, os médicos realizaram diversos exames para tentar definir o sexo, mas nenhum chegou a uma conclusão. Os exames genéticos demorariam muito e aí um dos médicos propôs uma cirurgia para adequar Jacob no sexo feminino ou masculino, mas ela optou por não realizar a cirurgia.

Sem o documento, ela não teve direito à licença-maternidade de seis meses, e nem conseguiu registrar o filho, que acabou ficando sem a possibilidade de ter um plano de saúde ou cartão SUS. Era como se Jacob não existisse. “Isso é uma violação gravíssima e, quando o DNV foi negado, percebi que havia muitas brechas na lei para pessoas intersexo. Elas são invisíveis”, desabafou à revista.

O registro só veio depois do exame de cariótipo, que avalia os cromossomos. O resultado apontou que Jacob era do sexo masculino. Porém, o bebê morreu em 2018, pouco antes de completar 1 ano e 8 meses de vida. Ele era portador de uma cardiopatia, e a família chegou a se mudar de São José do Rio Preto para São Paulo, onde ele ficou internado na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital do Coração. “Foi por meio da história do Jacob que tivemos muitos ganhos no Brasil sobre os direitos de pessoas intersexo”, diz ela.

Assim que chegou em casa com Jacob, vinda da maternidade, Thais se recorda de ter explicado para os filhos mais velhos sobre como o pequeno cresceria e deveria ser tratado. “Falei: 'O irmão de vocês nasceu intersexo. Com o tempo, nós vamos perceber se ele se sente mais menina ou menino, ou nenhum dos dois'. O objetivo era naturalizar”, conta.

Além disso, Thais e Beto procuraram associações e ONGs de apoio a intersexos, mas não encontraram nada. Foi assim que, em 2018, surgiu a Abrai (Associação Brasileira de Intersexos), que reúne diferentes ativistas em uma mesma causa: a integridade física e psíquica da pessoa intersexo.

Durante todo esse processo, Thais se descobriu também uma pessoa intersexo. “A vida inteira tive alguns problemas hormonais e sempre tomei remédios para não desenvolver características masculinas. Quando o Jacob nasceu, me toquei”, conta. Como uma das fundadoras da Abrai, a psicanalista passou a lutar pelo direito dos intersexos.

A primeira conquista veio em 2021, quando foi aprovado, em agosto, o pedido de providências de autoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Agora, crianças que nascem sem o sexo definido como masculino ou feminino poderão ser registradas com o sexo “ignorado” na certidão de nascimento.

Porém, mesmo em 2023, ainda não existe um levantamento exato de quantas pessoas intersexo existem no Brasil. De acordo com uma estimativa de 2017 do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), entre 0,5% e 1,7% da população mundial é intersexo. No Brasil, isso significaria 3,5 milhões de pessoas, em média.

A medicina pontua mais de 40 DDS (Diferenças de Desenvolvimento do Sexo) categorizadas. Esse fato, no entanto, não é suficiente para saber o que é uma vivência intersexo.

Além dos casos com genitália atípica, como o de Jacob, diagnosticado ainda na gestação, existem casos hormonais, onde a pessoa descobre que é intersexo na adolescência ou na fase adulta, como foi o caso recente da influenciadora Karen Bachini.

No Brasil, os procedimentos médico-cirúrgicos propostos para os casos de pessoas intersexo estão regulamentados pelo CFM (Conselho Federal de Medicina). Para a cirurgia, é necessário a autorização dos pais.

Para Thais, o seu grande sonho, junto da Abrai, é a conquista pelos direitos que seu filho não teve. “As pessoas gostam de questionar as diferenças umas das outras em vez de entender. Intersexos existem, vamos pensar em políticas públicas. Não há nada no Brasil para nós”, diz ela, que escreveu o livro Jacob(y): “entre os Sexos” e Cardiopatias, o que o Fez Anjo?, em homenagem ao filho.