Desrespeito ao nome social e transfobia estão entre as principais queixas
Ele não ligava para o que diziam os papéis. Já na primeira infância, Tiago (nome fictício) brincava de se chamar Tiago. Em 2020, quando o menino tinha 9 anos, o desejo rompeu os limites da fantasia e preencheu as etiquetas de livros, cadernos e da agenda escolar. A família, que acolheu o pedido, pensou que Tiago, aluno da rede municipal do Rio, não teria problemas no colégio. O que sua mãe relatou ter ouvido na sala da direção, porém, deixou-a estarrecida.
"A diretora me disse que a Coordenadoria Regional de Educação (CRE) não tinha autorizado o uso do nome social e que isso só mudaria com a apresentação de ordem judicial. Ela ainda comparou o caso do Tiago a uma criança que acreditava ser o Batman e contou: “Um dia ela descobriu que não podia ser o Batman”. Fico arrepiada até hoje", diz a mãe de Tiago, que preferiu preservar o anonimato dela e o do filho e não identificar a escola.
Solução do impasse
Tiago não está só. Anos após a publicação das primeiras normas que afirmam o respeito à identidade de gênero na educação básica, crianças e adolescentes trans e não binarie ainda lutam para fazer valer o direito de serem chamados pelo seu nome, que em muitos casos difere daquele na certidão de nascimento.
Para tentar contornar o impasse, a direção do colégio de Tiago propôs que os professores e alunos passassem a chamá-lo pelo sobrenome. A proposta foi aceita, até ele sofrer bullying de colegas durante a chamada. O menino, então, bateu o pé: queria ser chamado de Tiago. O problema foi resolvido, conta a mãe, quando a família buscou contatos na Secretaria municipal de Educação (SME).
Em 2018, uma resolução do Ministério da Educação (MEC) determinou que estudantes trans sempre devem ser chamados pelo nome social nas instituições de ensino, independentemente de terem ou não realizado a chamada requalificação civil — adequação dos documentos oficiais à identidade manifesta pelo estudante. O texto garante o direito também a menores, mediante a autorização dos pais.
A Secretaria de Educação do Rio, responsável pela maioria das turmas de ensino médio do estado, viabilizou o uso do nome social em sua rede em 2016. Atualmente, a pasta contabiliza 224 alunos que fazem uso do nome social — número 322% maior do que o total do primeiro ano da iniciativa. Na capital, segundo a SME, cerca de 100 alunos usam o nome social nos dias de hoje.
Com frequência, porém, o pedido do nome social só é respeitado no papel timbrado dos boletins escolares. Também estão excluídos da contagem os casos em que o requerimento é negado pela escola, não raro com justificativas obscuras. Coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual da Defensoria Pública do Rio, Mirela Assad diz que recebe, em média, um caso de desrespeito ao uso do nome social nas escolas por semana, em instituições públicas e privadas.
Após sofrer transfobia na escola, Lucas Dourado, de 15 anos, aluno do 1º ano do Ensino Médio, tentou suicídio. Depois de quatro dias de internação, mudou para outro colégio, onde hoje se sente feliz:
"É uma série de violências que começa pelo uso do pronome. As pessoas acertam pronome até de cachorro, mas não acertam com a gente."
Problemas que se agravam
Para atender ao pedido, a escola não pode exigir documento: basta o desejo manifesto do aluno. Caso a instituição resista, a Defensoria pode enviar ofício ou recorrer à Justiça. Segundo Assad, o órgão atende, por semana, dois casos de retificação de documentos de menores:
"Só quem participa das audiências de requalificação sabe o que significa. Toda a família chora de alívio. É um sofrimento retirado da criança. Com a requalificação, uma nova pessoa nasce."
A hostilidade do ambiente escolar é uma das maiores razões de evasão de estudantes LGBTQIA+ , sobretudo trans. A exclusão desse público dos espaços de aprendizado reforça, a longo prazo, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho.
Outra faceta é a restrição do uso dos banheiros. Segundo resolução de conselho vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, deve ser garantido aos estudantes o uso de banheiros, vestiários e espaços afins de acordo com a sua identidade de gênero. Mas em fevereiro, Nicole Barbosa, 16 anos, aluna do 2º ano do ensino médio do colégio estadual Liceu Nilo Peçanha, em Niterói, denunciou nas redes sociais que foi impedida de usar o banheiro feminino. À época, a Seeduc afirmou ter se tratado de “equívoco de funcionária”. O fato ilustra a rotina de violências que gera, para além das feridas psíquicas, problemas educacionais. Em casos extremos, o sofrimento leva até a tentativas de suicídio.