'1º gay assumido do Catar' abandonou o país e hoje luta por direitos: 'Só quero viver em segurança'
Fora do emirado há 11 anos, Nassar Mohamed se tornou símbolo LGBTQIA+ para catarianos. Agora, ele usa visibilidade gerada pela Copa do Mundo para contrariar governo e provar que a diversidade também existe no Oriente Médio.
Nasser Mohamed ainda era pré-adolescente quando percebeu que era diferente: em vez de sentir atração por meninas, eram os meninos que chamavam sua atenção. Nascido e criado no interior do Catar, entretanto, ele não conhecia o vocabulário LGBTQIA+ e nem sabia que existiam outros mundos além da heterossexualidade.
“Para ser honesto, no Catar, muitas pessoas nem sabem o que ser LGBTQIA+ é de fato, não sabem o que significa, apenas enxergam como sendo algo do mal”, diz Mohamed, em entrevista ao g1.
Esta visão negativa é respaldada pela lei catariana, que proíbe relações sexuais entre pessoas que não são casadas – inclusive se elas forem heterossexuais. O Código Penal do país também permite a prisão de quem “viola a moralidade pública”, o que afeta diretamente a população LGBTQIA+.
A sharia, ou lei islâmica, é adotada no Catar, e, de acordo com esta radical interpretação do Islã, a homossexualidade é punível com a pena de morte.
Por isso, quando, anos depois, Mohamed descobriu o significado do termo “gay” e se identificou, sua vida mudou radicalmente. Na ocasião, ele estava nos Estados Unidos estudando para se tornar médico e, ao voltar para casa, em uma pequena cidade no sul de Doha onde tinha que esconder quem realmente era, entrou em depressão.
“Chegou um ponto em que tive que decidir entre ficar em casa e partir”, lembra o catariano. “Então, eu decidi partir."
Isso foi 11 anos atrás. Desde então, Mohamed mora em San Francisco, nos EUA, e pediu asilo no país. Ele nunca mais falou com sua família ou com seus conhecidos.
Copa do Mundo
Com a Copa do Mundo se aproximando, em 2020, Doha garantiu ao resto do mundo que receberia torcedores LGBTQIA+ de braços abertos, afirmando, inclusive, que os visitantes poderiam levar bandeiras de arco-íris e outros símbolos da comunidade aos estádios durante jogos. A mesma “cortesia”, no entanto, nunca foi estendida aos moradores do emirado: por lá, símbolos que fazem apologia à diversidade sexual e de gênero são proibidos.
Uma das justificativas para essa e outras atitudes do governo catariano em relação à comunidade é a ideia de que os LGBTQIA+ não existem no Catar, pois “essa é uma coisa do Ocidente”. “Nós precisávamos mudar esta narrativa”, aponta Mohamed.
Foi neste contexto que o médico decidiu que assumiria sua sexualidade publicamente – algo que mudaria não apenas sua vida, mas toda discussão sobre diversidade no Catar, permanentemente.
Primeiro de muitos
Não demorou para Mohamed ganhar o título de “primeiro catariano gay assumido” após ele começar a conceder entrevistas para veículos jornalísticos de todo o mundo em maio de 2022. Já nas redes sociais, o médico foca em compartilhar postagens sobre a vida de pessoas LGBTQIA+ em sua terra natal.
Toda esta popularidade tornou Mohamed um símbolo de representatividade para diversos catarianos e, com isso, muitas pessoas que vivem ou viveram no Catar nas mesmas circunstâncias passaram a compartilhar suas histórias com o rapaz. Por isso, desde o início da Copa, ele tem divulgado alguns desses relatos em seu Instagram (@dr._nass).
“Estou colocando tudo o que coletei até agora em um só lugar, mas também tentando consolidar tudo em uma organização sem fins lucrativos junto com uma fundação para que organizações de direitos humanos e governos saibam o que está acontecendo”, explica Mohamed.
Alguns destes planos já estão em ação.
Nos últimos meses, Mohamed começou uma petição para dizer à Fifa e ao Catar que “amor não é um crime" criou uma organização sem fins lucrativos, a Alwan Foundation, para defender a diversidade de gênero e orientação sexual no Oriente Médio, com foco na região do Golfo; e criou o grupo Proud Maroons, que reúne torcedores de futebol LGBTQIA+ do Catar.
“Sair do armário tem sido muito intenso porque eu tenho feito esse ativismo público”, afirma. “Mas também tenho falado com funcionários de diferentes governos [que se interessam em entender o assunto].”
Contudo, a maior contribuição de Mohamed até agora talvez seja a criação de um relatório em conjunto com a organização Human Rights Watch (HRW) sobre a situação das pessoas LGBTQIA+ no Catar.
A ideia surgiu quando, ao solicitar asilo nos EUA, Mohamed buscou documentos para provar a perseguição da comunidade LGBTQIA+ em seu país natal— mas não encontrou nada.
O médico, então, colocou a instituição em contato com seis outras pessoas LGBTQIA+. Os resultados foram divulgados em outubro de 2022.
Todos os entrevistados disseram que os funcionários do Departamento de Segurança Preventiva os detiveram em uma prisão subterrânea em Al Dafneh, Doha, onde foram abusados verbal e fisicamente, inclusive sofrendo espancamentos. Ao fim das “sessões”, os seis foram obrigados a assinar um documento indicando que “cessariam as atividades imorais”.
“Essas pessoas são presas em locais públicos, às vezes com base na forma como se expressam, e têm seus telefones confiscados”, conta Maria Laura Canineu, diretora do HRW no Brasil. “As autoridades acessam esses telefones e monitoram as atividades online dos detidos para aprender outras pessoas [LGBTQIA+].”
E não são apenas catarianos que correm o risco de serem presos. Uma das mulheres transgênero entrevistadas para o relatório contou que testemunhou a prisão de pessoas de duas lésbicas marroquinas, quatro gays filipinos e um gay nepalês.
“A lei permite que as pessoas sejam presas mesmo sem acusação formal, [se as autoridades acharem] que têm provas o bastante para prender alguém por conduta imoral, é o suficiente”, explica Canineu. “E isso contribuiu para o clima de insegurança.”
Honrar a tradição
Como Mohamed já esperava, a descoberta dos LGBTQIA catarianos pelo mundo não agradou a todos. Ele só não esperava que a repercussão negativa seria tão grande — e violenta.
“Tenho recebido muitas ameaças de morte, principalmente desde que a Copa começou”, afirma o médico. “E as ameaças são muito específicas, com detalhes do que gostariam de fazer comigo."
Os conterrâneos de Mohamed que se manifestam contra a comunidade LGBTQIA+ do Catar focam seus argumentos no que chamam de tradição, explica o ativista.
“Essas pessoas afirmam que é necessário ‘respeitar a cultura e a tradição’. No entanto, não defender as minorias, apoiar ataques violentos [a qualquer um] não pertence a nenhuma cultura ou religião”, diz Mohamed.
Até porque, sob a ótica tradicional, a opinião do médico é corroborada pela própria história do Catar.
Entre 1871 e 1913, o emirado era parte do Império Otomano, que via relações homoafetivas como naturais. Segundo diversos pesquisadores, a homofobia se tornou comum em muitas partes do Oriente Médo após a colonização europeia.
Mas Mohamed não quer que seu ativismo se confunda com questões técnicas ou geopolíticas. Para ele, lutar pela causa LGBTQIA+ nada mais é que lutar por direitos humanos básicos.
“Não me importo com o que as pessoas acreditam, com suas opiniões. Estou exausto [de ter que defender direitos humanos básicos]. Só quero poder estar em segurança e viver”, diz.